danielle cukierman



ROTA DE FUGA

 

(…) E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos.

RAY BRADBURY, FAHRENHEIT 451.

 

O que você salvaria se tivesse apenas alguns minutos para escapar de um incêndio? Como tentaria fugir? Conseguiremos sobreviver às queimadas cognitivas a que temos sido submetidos?

Estas perguntas relampejam em minha cabeça enquanto percorro, fisica ou mentalmente, a primeira individual de Danielle Cukierman, Rota de fuga. A mostra é baseada em signos ligados à prevenção de incêndios e reafirma o interesse da artista pela ressignificação de materiais industriais e da sinalização urbana. Além de uma série de gravuras – trabalhos que se apropriam dos elementos gráficos das placas de orientação para a fuga em caso de fogo – a exposição reúne duas obras site specific. A primeira é Emergência, um conjunto de tapetes recriados a partir do quadrado vermelho e amarelo que sinaliza as áreas com extintor de incêndio em locais públicos. A outra é Resguardo, instalação na janela e na porta de sua sala na galeria que reverbera na fachada da Villa Aymoré, dialogando com a escultura permanente de Iole de Freitas instalada no prédio.

Resguardo é uma cortina feita de PVC colorido, que, nas cores específicas utilizadas pela artista (âmbar, verde, amarelo), serve para a proteção contra faísca em áreas industriais de solda. Junto aos demais trabalhos da mostra, cria uma grande metáfora sobre o incêndio.

O que está queimando? O que deveríamos queimar? Para onde fugir?

Do que não deveríamos tentar escapar? No trecho que serve de epígrafe para esse texto, revisito o livro Farenheit 451 e seu mundo distópico. No futuro imaginado por Ray Bradbury, o protagonista Guy Montag trabalha como “bombeiro”, o que, nesse tempo, não tão irreal para habitantes do Brasil de 2019, significa “queimador de livro”. A tarefa do personagem é incinerar todo e qualquer objeto que armazene histórias e conhecimento, eliminando os arquivos que permitam uma relação mais individual e profunda com a palavra.

Há, na obra de Danielle, o eco silenciado deste mundo que virou cinzas. Seus objetos e imagens, nascidos de rigorosa pesquisa formal, parecem se posicionar no espaço e no tempo como um “depois”, isso é, como testemunhas de histórias que, se não estão ali, de corpo e voz presentes, podem ser sentidas como vibração, como se cada trabalho fosse um sismógrafo. Essa ambiguidade entre estar e não estar é reforçada pela frequente inversão de hierarquias, já que a artista confere protagonismo aos materiais desprezados ou invisíveis. Em Rota de fuga, isso fica claro em Encurralados, gravura realizada no verso de um papel de paspatur. O que é moldura, um acessório às gravuras em geral, nesta vira o próprio suporte da imagem.

Outro ponto de ênfase das contradições é o cuidado com os títulos. O uso atento das palavras me faz crer que Danielle dialoga com a noção de ready made, mas a ultrapassa, realizando uma operação recorrente na arte brasileira. A apropriação que a artista faz de materiais que já estão no mundo é recoberta por uma teia narrativa, que lhes embaralha os significados originais. Cria com isso o que gosto de chamar de “objetos turbulentos”, tomando emprestado o título de um livro do escritor goiano José J. Veiga, um mestre da literatura fantástica.

Na coletânea de contos Objetos turbulentos (1997), J. Veiga imagina vidas secretas para objetos comuns, caso de um soturno relógio de parede.  Na arte de nosso país, o que chamo de “objetos turbulentos” é um conjunto de obras que recobre o legado de Duchamp com uma camada de frescor e de inquietação, enchendo sua Fonte de desdobramentos. Mas o que seriam tais objetos?

Penso em Dado, em que Cildo Meireles usa a palavra “dado” para embaralhar os significados do objeto cúbico da mesa de jogo com outras duas possibilidades de uso do mesmo vocábulo (“dado” como “informação”; “dado” como verbo, aquilo que já se deu, já ocorreu; “está dado”, oferecido ao tempo). Penso em Satélites, obra em que Antonio Dias se apropria das latas redondas de queijo do Reino e as faz flutuar, como planetas em suas órbitas. Se Cildo assume que seus objetos são “semânticos”, Antonio cria com as latas de queijo uma espécie de móbile, que insinua uma galáxia, fazendo com que o título insinue a fricção, o ponto de turbulência a que me refiro. Os Satélites de Dias vêm de latas retiradas de sua função industrial, mas há menos ênfase na operação conceitual que lhes altera o campo do que no esforço semântico de lhes criar novos fluxos de discurso, falas estas que são silenciosas, recalcadas. Eu me arriscaria a dizer que, se pensarmos nas neovanguardas dos anos 1960 e 1970 de nosso país, fica claro um viés poético e literário na abordagem do objeto, que passa a ser não apenas um objeto viajante, que se desloca da indústria para o museu, mas também um objeto narrador, que inventa novas histórias para si. Esta abordagem narradora é um paradigma para as gerações posteriores.

Ao longo de sua trajetória, Danielle tem caminhado para uma inscrição nessa abordagem dos objetos oriundos da indústria, precisamente das obsolescências geradas pela velocidade das atividades industriais e tecnológicas. Isso fica evidente nos trabalhos seminais da série Parahyba, pinturas criadas a partir dos cobertores populares utilizados pela população de rua das grandes cidades brasileiras. O interesse da artista pelo material em si é evidente, já que ela enfatiza o aspecto táctil e a geometria existente nos cobertores. Mas sua obra extrapola a fronteira do trato formal, embora de forma alguma possa ser restrita ao que alguns críticos chamariam de “relacional”. O interesse de Danielle não é no histórico dos refugos, e nem nas odisseias de cada objeto (ela jamais trabalhou com cobertores de fato usados por desabrigados, por exemplo, preferindo materiais “novos”). O que parece mais importante é o desejo da artista de acessar a memória que cada um de nós tem dos materiais e dos signos gráficos que utiliza. Contribuem para isso de forma decisiva dois aspectos recorrentes de sua obra: o cuidado com os títulos e a ênfase na convocação do corpo e do tato pelos trabalhos.

No caso dos títulos, Parahyba (ao mesmo tempo a marca dos cobertores populares e o termo preconceituoso e redutor para se referir aos nordestinos e pobres) é um marco inicial, mas Resguardo também é um ótimo exemplo. Parte da série Entre, que cria cortinas com tiras de PVC colorido. Elas sempre convocam o corpo do visitante das exposições, que precisa ultrapassar essa barreira translúcida entre um ambiente e outro, entre o dentro e o foro. Em Rota de fuga, Resguardo ocupa, sem nenhuma timidez, a fachada e a área interna da Aymoré simultaneamente.  Trata-se de um trabalho que, embora esteja fisicamente dentro e fora do espaço com um único corpo físico, jamais acontece dentro e fora ao mesmo tempo. Sua turbulência também reside aí, nessa desconexão e sobreposição entre tempos e espaços. Durante o dia, é o momento de Resguardo tingir com suas cores as paredes da galeria, dialogando com os demais trabalhos do ambiente. À noite, sua presença na área interna se dilui, com as tiras coloridas transformando-se em um plano opaco. Em compensação, as cores brilham na face voltada para a rua, alterando o aspecto do prédio e sinalizando que há algo de diferente acontecendo em seu interior.

Sinalizar. É disso também que fala essa exposição, que de alguma maneira ecoa os momentos terríveis que temos atravessado, individualmente e como nação. Em Emergência, Danielle volta a sobrepor seus interesses formais e semânticos. Ela cria com tapetes de sinalização de incêndio um tapete-mosaico, totalmente irregular. Se por um lado a instalação brinca, gestalticamente, com a apreensão da cor e com uma releitura no chão dos Metaesquemas de Hélio Oiticicapor outro o título e a função desses tapetes reveste o trabalho com a camada de turbulência narrativa a que me refiro desde o início deste texto. O piso da galeria em estado de atenção. O piso da galeria alertando: em caso de fogo…

Fugir? Reagir?

As xilogravuras Escape e as duas da série Quebra evocam e subvertem signos de placas contra incêndio, e, mais uma vez, Danielle opta por levar os signos gráficos para um campo material “quente”, táctil e cheio de ruídos, já que a matriz em madeira das gravuras deixa vestígios de seu corpo no papel. As imagens de Escape Quebra estão banhadas de certa angústia, e sua atmosfera opressora talvez resida no fato de que, fora da escala, das cores e das configurações usuais, elas são e não são sinalizações reais do ambiente, embora pudessem ser.

Os sentidos libertadores também residem aí: a ficção é, em si, uma porta de saída. Ou de novas entradas, como mostra Encurralados. No campo do material, o paspatur quase invisível transforma-se em veículo de imagens apenas entrevistas, de signos objetivos quase engolidos por uma matéria opaca e informe. E não são imagens quaisquer: as figuras humanas acumuladas nas placas de sinalização geralmente ficam no lugar seguro no momento do incêndio. Insistir no segundo olhar para essa imagem, que quase não é vista na aspereza do papel, é perceber que o ponto de fuga pode, quem sabe, verter-se em ponto de encontro.  Tão sólidas e tão transparentes, essas figuras amontoam-se depois de migrar das margens para o centro e encontrar pouso e abrigo na matéria refugada. Elas poderiam ser a síntese multidão dos discursos – discretos, quase mudos – que povoam a obra desta artista inquieta.

 Daniela Name

 Curadora